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Em mais um episódio da guerra entre direitistas pela conquista de náufragos do bolsonarismo, agora a história curiosa de fusão e duplicidade entre grupos de extrema direita supostamente rivais: duginistas e ultraliberais. Este artigo é uma análise à partir do recente caso que causou indignação popular, envolvendo o Vox e o deputado duginista Jordi de la Fuente.

Jordi de La Fuente discursa

Em Barcelona, o partido de extrema-direita espanhol Vox elegeu Jordi de la Fuente como deputado. O espanto da eleição se dá pelo seu longo histórico de militância neonazista, que é de conhecimento público. Fuente é uma das principais lideranças do Vox, foi vice-secretário da província, mas permaneceu ocultado até agora pelo partido, na esperança de evitar mais desgastes com denúncias de relações nazifascistas.

Santiago Abascal, o líder do Vox, tem uma íntima relação com a família Bolsonaro, inclusive passando pelo Brasil para conspirar com eles uma aliança internacional de extrema-direita ultraliberal. À partir daí surge a dúvida sobre a aparente contradição entre Fuente e seu Vox, e facções de extrema-direita que simulam oposição a Bolsonaro, como os duginistas.

Jordi de La Fuente e Santiago Abascal; Abascal e família Bolsonaro

Recordemos primeiro o histórico de Fuente. Ele foi um dos mais importantes membros do partido nazi MSR (Movimento Social Republicano). O MSR é o resultado de uma série de conflitos faccionais dos círculos nazifascistas dos anos 90, e suas tentativas de organizar uma internacional “vermelho-marrom” (fascistas que usam a linguagem da esquerda para enganar os incautos) na Europa. Seus membros vieram da organização duginista Alternativa Europea, inspirada no grupo francês Nouvelle Resistance (Nova Resistência).

A história é longa, mas podemos resumir o colapso dessa primeira investida duginista dos anos 90 com os seguintes eventos. Parte da Nova Resistência francesa, que nasceu como uma tentativa de se vender como uma renovação dissidente das velhas organizações fascistas, num dado momento se reaproximou dos neofascistas tradicionais. No entanto, um escândalo envolvendo ações violentas de cunho satanista, orquestradas pelo líder da NR, o ocultista Christian Bouchet, foi amplamente divulgado na imprensa, tornando o grupo conhecido nacionalmente e gerando discórdia entre militantes de diferentes correntes. Concomitante a isso, houve a retomada de conexões de parte do grupo com personagens conflituosos, como a Front Nacional (atual Rassemblement National) da família Le Pen, que rechaçavam desde sua formação, e em especial com o neonazista Michel Caignet, que foi preso por distribuir material de pedofilia na França. Isso tudo levou a uma limpa no movimento vermelho-marrom global.

A dessacralização anticristã e satanista da Nouvelle Resistance na mídia francesa

A macroorganização nazbol Parti Communautaire National-Européen (PCN), de Jean Thiriat e Luc Michel, iniciou uma série de ações com a saída de Bouchet da liderança da Nouvelle Resistance para conter a imagem pública negativa de regressão e mistureba ideológicas, e voltar a se assemelhar mais a ambiguidade clássica e ordeira do nacional-socialismo alemão dos anos 30, removendo representantes de cargos executivos como resposta aos “satanistas, pedófilos, reacionários e lepenistas”. Efetivamente, a Nova Resistência francesa foi absorvida pela PCN e parte da rede nazbol espanhola rejeitou este golpe, entre eles a Alternativa Europea, que passou a adotar o slogan, no congresso de 1996, da Nouvelle Resistance: “menos esquerdismo, mais fascismo!”. Ainda assim, adotaram também o nome Círculos da Resistência para a ala que permaneceria em contato com partidos 100% marrom, ou seja, ainda mais explicitamente à direita do neofascismo internacional.

No ano seguinte a Alternativa Europea fundaria o partido Alternativa Europea-Liga Social Republicana, com o próprio Aleksandr Dugin discursando em seu evento de abertura, além do crowleyano Bouchet e Gregory Ombruck, do escândalo satanista mencionado anteriormente, em torno da revista Napalm Rock. Dessa facção nazbol surgiu na Espanha o MSR, em 1999, do qual Jordi de la Fuente foi um dos presidentes. Junto do Movimento Patriota Socialista, uma organização da gangue neonazi Blood and Honour, a MSR levou 17 candidatos neonazis terroristas a concorrer nas eleições de 2004. Cinco anos depois, o presidente da MSR, Juan Antonio Llopart, foi preso com mais três neonazistas, e Fuente se tornaria líder do partido. Tanto Llopart quanto Fuente permaneceram firmes na rede de Aleksandr Dugin, promovendo as chamadas Jornadas da Dissidência, então principal evento utilizado por Dugin para difundir suas ideias, reunindo os grupelhos mais radicais do nazifascismo mundial.

Em 2008, Dugin enviou o chefe de relações internacionais do Movimento Eurasiano para Espanha, Aleksandr Kuznetsov, a propósito de uma das Jornadas da Dissidência, onde discursou ao lado de membros da Blood & Honour e outros importantes ideólogos da rede, como o antissemita Alberto Buela (publicado pela Nova Resistência no Brasil sem nenhum entrave, tanto da justiça como da mobilização da esquerda, através da plataforma de financiamento coletivo Catarse). Poucos meses antes dessa “jornada”, Fuente havia sido detido por participar de um ataque com pichações a uma sinagoga com outros militantes neonazistas, uma provocação no intuito de instigar oportunisticamente ódio racial contra toda a etnia judaica. Anos depois, Fuente seria detido de novo, instigando ódio contra muçulmanos com um ataque a um centro de menores refugiados.

Jordi de La Fuente e o enviado de Dugin, Aleksandr Kuznetsov

Em 2016, Fuente fez o prefácio e lançamento do livro de Dugin, Projeto Eurásia, pela editora Hipérbola Janus, que junto da Ediciones Fides, esta atrelada ao mais famoso propagandista neonazista da Espanha, Pedro Varela, lança obras de Dugin e outros membros da rede dele, como Leonid Savin.

Mas como então um duginista como Fuente se associaria ao Vox? Os defensores de Dugin não se descrevem como “anti-liberais”? Primeiro, os movimentos de extrema direita na Espanha sofreram grandes rupturas na década passada. Se por um tempo a MSR mobilizou nazbols e outros neonazis impunes, como a Blood & Honour e os casapoundistas do Hogar Social, aos poucos, séries de prisões e exposições públicas tornaram a mobilidade entrista deles cada vez mais difícil. No meio do caminho surgiram outros movimentos mais ou menos discretos, às vezes pescando incautos de esquerda, outras vezes mais convictos de direita, como o España 2000. Fuente chegaria a migrar para o Partido por Catalunha, de Josep Anglada, ligada aos casapoundistas da Juventude Identitária (bem retratados nesse documentário), mas esse também colapsou quando Anglada roubou os fundos do partido, sendo expulso e criando o SOMI (Somos Identitários).

Neonazis do Blood and Honour são presos e sua inserção na disputa eleitoral revelada

O Vox se apresentou como uma ótima oportunidade porque, apesar de sua imagem de estritamente americanófilo e neoliberal, jogar duplo dentro de uma estrutura dessa envergadura é tolerável e profundamente eficaz, como o caso da AfD (Alternative für Deutschland) alemã demonstra muito bem. Um caso relatado certa vez por Ramon Bau, um militante histórico do neonazismo espanhol, ajuda a entender a estratégia aparentemente contraditória porém profundamente oportunista. Segundo ele, a Editora Fides de Llopart recebeu um grande investimento do governo wahabi da Arábia Saudita para publicar livros antissemitas, e, segundo Pedro Varela, com o pedido vindo diretamente do embaixador saudita. Ainda assim, a mesma rede agitava e organizava neonazistas radicalmente islamofóbicos, que realizavam ataques na Espanha contra a população muçulmana e suas mesquitas, num ambíguo cálculo de avanço de agenda. Dessa forma, no Vox, Fuente pode ao mesmo tempo não mencionar que a facção liberal de críticos do governo iraniano e seus aliados, o CNRI, financiou o partido durante seis meses com milhares de euros, e ainda assim manter um histórico de afagos por anos, até mesmo com encontros no Líbano, com membros do partido fascista SSNP (Partido Social Nacionalista Sirio) em propagandas em favor dos aliados do regime iraniano.

Jordi em marcha contra mesquitas

Ainda assim, a fragmentação da extrema direita é tão profunda que Llopart, o ex-líder da MSR, em um dado momento atacou publicamente Fuente, então líder da MSR, já em meados dos anos 2010, quando este formou a coalização Respeto para a criação de uma direita alternativa, “desfazendo as conquistas de muitos anos da MSR” nessa dissolução. O parâmetro de ruptura e associação deles, obviamente, é incompreensível do ponto de vista razoabilidade. Basta lembrar que em 2014 a MSR duginista recebia o partido neonazista ucraniano Svoboda de braços abertos, e quando a guerra com a Rússia escalou, simplesmente apagaram esse histórico de aliança entre duginistas e azovistas da memória coletiva.

MSR recebe comitiva dos ucranianos da Svoboda

Fuente no Líbano com mulher árabe segurando a faixa do MSR

Com isso é muito claro concluir que não há contradição nenhuma entre o pseudo-discurso anti-Bolsonarista dos duginistas brasileiros e a sua prática concreta de alianças supostamente incompreensíveis.

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