por Alexandre R. Malhado (encontrado na revista Sábado, disponível aqui)
A editora do neonazi João Martins começou a traduzir obras do ideólogo russo de Vladimir Putin. Um antigo candidato do PNR e colaborador da editora estreitou ligações com o movimento extremista brasileiro Nova Resistência, a maior máquina de propaganda duginista em português.
Era um encontro ansiado. Em 2008, Flávio Gonçalves rumou à Rússia para discursar na Universidade Estatal de Moscovo a convite do Movimento Internacional da Eurásia, que promove a liderança russa do espaço da Eurásia para desafiar o Ocidente liberal. Uma das figuras máximas do movimento era então o filósofo Aleksandr Dugin, hoje apontado como o ideólogo de Vladimir Putin – e o português conseguiu conhecê-lo. “Foi aí que contactei diretamente com Dugin pela primeira vez e pedi autorização para o editar cá”, diz Flávio Gonçalves à SÁBADO, que regressou a Lisboa com o aval editorial de Aleksandr Dugin, com quem foi “mantendo pontualmente contacto por email e Facebook”.
Dois anos depois, foi editada a primeira versão portuguesa da obra do russo, A Grande Guerra dos Continentes, traduzida por Gonçalves para a sua própria editora, a Antagonista. Ao lado de vários camaradas, entre eles amigos de extrema-direita dos seus tempos no Partido Nacional Renovador (PNR), Flávio Gonçalves fundou o Instituto de Altos Estudos em Geopolítica e Ciências Auxiliares (IAEGCA) e editou Dugin durante vários anos – até se desencantar. “O nome de Dugin tornou-se demasiado associado à extrema-direita e perdi o interesse de o continuar a editar”, admite. Contudo, outros continuaram o que Gonçalves havia começado. Desde a invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, amigos de Flávio Gonçalves ligados à extrema-direita portuguesa retomaram o trabalho editorial das obras de Aleksandr Dugin, numa rede de propaganda que se estende a movimentos extremistas brasileiros, o grande mobilizador lusófono das ideias antiliberais do russo.
A teia para lá do Atlântico
Ao lado de João Franco, seu conhecido do PNR, cabeça de lista pela Guarda em 2005, Flávio Gonçalves traduziu Geopolítica da Rússia Contemporânea em 2016. “Se não contarmos com os textos dispersos, traduzi três livros, um pela Antagonista e dois pelo IAEGCA”, explica. “Após terem esgotado, optámos por não reeditar as obras de Dugin, embora todos os meses chegassem encomendas e haja mercado.”
Durante seis anos, não foram editadas obras de Dugin em Portugal, mas a guerra na Ucrânia foi a oportunidade certa para a Contra-Corrente, editora de Rui Amiguinho (dirigente da associação anti-imigração Portugueses Primeiro) e João Martins (neonazi condenado pela morte de Alcindo Monteiro) traduzir a primeira edição em Portugal de Quarta Teoria Política, considerado por muitos a magnum opus de Dugin. Nessa obra, o russo tenta esboçar uma nova ideologia crítica das democracias liberais, que une pontos do fascismo e do comunismo com elementos históricos e culturais do tradicionalismo ortodoxo e euroasianismo, legitimando a ocupação russa da Ucrânia. O prefácio é de João Franco, que explica o motivo da tradução das obras de Dugin: “O interesse público português aumentou com o conflito russo-ucraniano, começando o nome de Dugin a ser mencionado não só nas redes sociais, mas também noutros meios de comunicação social portugueses”, lê-se na obra, adquirida pela SÁBADO no armazém-loja da Contra-Corrente em Santo António dos Cavaleiros. “Era tempo de lançar em Portugal novas obras de Dugin ou de reeditar outras, entretanto esgotadas, para responder ao interesse suscitado e à procura de leitores.”
“[Traduzi] com todo o gosto, já que me interessa a obra de Dugin. De resto, não sou editor, nem tenho outro papel na Contra-Corrente”, afirma João Franco à SÁBADO. Nunca conheceu Dugin – “enviei-lhe uma mensagem de condolências pela morte da filha, o ano passado” – mas admira-o. No mesmo prefácio, Franco opõe-se ao liberalismo: “A liberdade contemporânea é uma liberdade que se confunde já com libertinagem, direi mesmo com anarquia, cada um que faça o que quer e bem entender. A pós-modernidade removeu os últimos obstáculos a este descalabro e abriu a porta a um desfile grotesco de tarados, aberrações e maníacos.”
Gonçalves, Franco, Amiguinho e Martins conheceram-se no PNR e colaboravam na edição de livros. Antes de ser um projeto editorial autónomo, a Contra-Corrente era uma coleção da IAEGCA. Em 2014, por exemplo, editaram as obras Compreendendo a Homossexualidade, do médico Jokin de Irala, professor na Universidade de Navarra que acredita em práticas de reconversão sexual. Por divergências editorais, os dois grupos desentenderam-se. Em 2019, João Franco publica sob a chancela Contra-Corrente A Ideia Juche sob a perspetiva nacional-identitária, uma reflexão elogiosa do regime de norte-coreano. Na perspetiva de Franco, a ideia de Juche (filosofia oficial do Partido dos Trabalhadores da Coreia, nascida durante o período de resistência à colonização japonesa ) “converteu-se na grande ideia reitora da revolução de nossa época (…) num período em que as massas populares surgiram como protagonistas da história, e sobre a base das ricas experiências da luta revolucionária”.
É precisamente esta obra sobre o regime de Pyongyang que levou João Franco a estreitar ligações com camaradas brasileiros, com ligações diretas a Dugin. Além das colaborações com a Contra-Corrente, o português tem apoiado a editora brasileira Ars Regia, parceira do maior movimento duginista brasileiro, a Nova Resistência (NR). Raphael Machado, líder do movimento, confirma a ligação: “Eu conheço-o do mesmo contexto de redes sociais, mas mantive mais contacto com ele porque ele tem apoiado desde o início a Editora Ars Regia e também por ser um autor de algumas obras cuja publicação é de nosso interesse.” Já João Franco diz que conheceu a Ars Regia “no âmbito da discussão e divulgação das ideias de Aleksandr Dugin, e da busca de mais informação sobre o que se fazia sobre ele internacionalmente”. A Ars Regia tem em fase de pré-venda o livro de Franco sobre a Coreia do Norte e pretende publicar no futuro a sua outra obra sobre a China.
Brasil impressiona Dugin
Graças à NR, o Brasil tornou-se um dos bastiões do duginismo de língua portuguesa. Quem o diz é o próprio Aleksandr Dugin: “Caros amigos brasileiros da Nova Resistência. Seu movimento, sua fraternidade espiritual e ideológica é um exemplo da corrente mais consistente e persistente da Quarta Teoria Política. É graças a vocês que na América Latina é mais amplo em escala global”, afirmou em vídeo, no âmbito do II Congresso do movimento. “Vocês são o futuro do Brasil.” No mesmo discurso, elogia “a tremenda sensibilidade intelectual do líder Raphael Machado” e “a beleza surpreendente das meninas do movimento”. “Os congressos [da NR] parecem ser realizados como parte de um concurso Miss Brasil.”
“Acabei me tornando o principal representante da ideia de uma Quarta Teoria Política, mas adaptada aos trópicos”, admite Machado. Afinal, Machado e Dugin são amigos próximos. “Me correspondo com ele desde 2009-2010 e nos conhecemos pessoalmente desde 2012”, explicou. Descobriu o seu pensamento por volta de 2007 quando “pesquisava sobre temática tradicionalista e a crítica da modernidade”.
No Brasil, a NR chegou a ser identificada como “grupo extremista”. Segundo o relatório Avaliação Nacional de Riscos de 2021, requerida pelo órgão governamental Conselho de Controlo de Atividades Financeiras a um grupo de trabalho, a Nova Resistência pertence à lista de “grupos extremistas violentos não islâmicos”. “Apoiantes da ideologia da Quarta Teoria Política, o grupo Nova Resistência, o novo integralismo”, lê-se no relatório. Sobre o relatório, Machado afirma que “ele foi produzido por um grupo de trabalho não governamental (a pedido da COAF), a partir de informações fornecidas por órgãos de inteligência estrangeira” – e desvaloriza-o. “Imaginamos que a inclusão da Nova Resistência seja uma derivação das sanções aplicadas pelos Estados Unidos a Alexandr Dugin já desde 2015, já que hospedamos nosso site no mesmo servidor privado usado pelos projetos de Dugin”, considera o líder da Nova Resistência, que garante ser “uma organização pacífica.”
Uma coisa é certa: a NR tem sido um motor vital da ideologia de Dugin na América Latina de língua portuguesa. “Eventualmente ajudei a trazê-lo ao Brasil em 2012 para um ciclo de palestras em universidades e congressos. Desde então seguimos em contacto, fui aluno dele em um curso sobre física grega antiga, co-organizei com ele a Conferência Global sobre Multipolaridade [que contou com a participação do comentador Alexandre Guerreiro]”, acrescentou. Machado conheceu o comentador português no ano passado: “Somos parte de uma espécie de ‘rede de analistas lusófonos’ que se acompanham mutuamente já que as análises e reflexões de uns alimentam as de outros.”
Portugueses com Dugin
Franco e Guerreiro não são os únicos portugueses com ligações a Raphael Machado. Também no II Congresso do movimento, Manuel Rezende do Escudo Identitário congratulou o “fantástico trabalho” do movimento brasileiro. “Como vocês sabem, inspira também os vossos camaradas deste lado do Atlântico. Liberdade, justiça e revolução”, afirmou. Porém, há uma contradição: além de Manuel Rezende já ter demonstrado apoio à causa ucraniana no conflito com a Rússia, o Escudo Identitário chegou a trazer para um dos seus congressos Olena Semenyaka, responsável do Departamento Internacional do Corpo Nacional, o braço político do Movimento Azov neonazi ucraniano. Também João Martins, coeditor da Contra-Corrente, mostrou apoio à causa ucraniana. Chegou a fundar uma célula (sem expressão) do Misanthropic Division, organização internacional que recrutava pessoas para a causa do Azov. Como se explica esta contradição? A editora Contra-Corrente não respondeu às questões da SÁBADO.
“Não tenho declarações a prestar”, afirma Manuel Rezende à SÁBADO. Já o líder da Nova Resistência afirma que “à época não me recordo de ter notado a escolha geopolítica do Escudo Identitário”. “O convite surgiu porque alguns membros do Escudo expressaram simpatia por nós”, sublinhou. “Naturalmente, lamentamos a opção geopolítica deles, com a qual não podemos de forma alguma compactuar e que, claro, também obsta a continuidade de relações”, acrescenta. Sobre apoios em Portugal, sabe “por alto que alguns militantes da Nova Resistência se dão bem com militantes do PCP”. “Inclusive que há alguns militantes do PCP que especificamente me acompanham e compartilham entre si artigos meus.” Sobre a Contra-Corrente, Machado afirma que “conhece a empresa”: “Já vi alguns trabalhos deles, mas tivemos pouquíssimos contactos.” No passado, Machado já foi entrevistado por Rui Amiguinho para a revista Plus Ultra.
Para já em Portugal, o fenómeno da Quarta Teoria Política é diminuto, mas a língua portuguesa é uma prioridade para Dugin. “Portugal é geopoliticamente irrelevante, sempre foi, o interesse principal de Dugin centra-se no Brasil”, conclui Flávio Gonçalves.
O “ex-extremista” do PS
Em setembro de 2023, Flávio Gonçalves responde à SÁBADO enquanto militante do PS. Pedronunista assumido, foi autarca socialista da junta de freguesia da Venteira entre 2017 e 2021 – mas nem sempre foi assim. Tem um passado na direita e durante a rebeldia da adolescência na Horta, Açores, foi anarco-punk e, mais tarde, nazi do movimento norte-americano NSDAP/AO, para quem editava propaganda. Em adulto passou pelo CDS-PP, tanto pela jota como pelo partido, onde foi alvo de um processo disciplinar por desvio ideológico, tendo militado ainda no PPM e PNR. Hoje assume-se como libertário e homem de esquerda – e foi o lado “anti-imperialista” de Dugin, dos tempos do nacional-bolchevismo e eurasianismo, que o atraiu inicialmente.
“Nada do espiritualismo e tradicionalismo reacionário que Dugin defende é conciliável com a minha atual ideia de liberdade, mas o foco atual é o anti-imperialismo e aí tenho de elogiar o seu intelecto, a sua lucidez e o seu sacrifício”, explicou Gonçalves.
Autoridades em alerta Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2022, houve aumento de “migração de atividades de extrema-direita para o ambiente online” e foi “disseminada propaganda extremista”. O objetivo? “Ataque permanente à democracia”. O relatório aponta que “a invasão russa na Ucrânia teve impacto nos diferentes espectros do extremismo”.