por Marcelo Fantaccini Brito (encontrado na revista Trincheiras, disponível aqui)
A Quarta Teoria Política e o libertarianismo são os extremos opostos do Political Compass. O primeiro é o máximo do socialismo no eixo econômico e o máximo de autoritarismo no eixo social. O segundo é o máximo de liberalismo no eixo econômico e liberalismo no eixo social. O que estas duas ideologias têm em comum? A primeira característica em comum é o fato delas não serem de esquerda. A Quarta Teoria Política, segundo seus defensores, seria a superação da dicotomia esquerda/direita. O libertarianismo, segundo alguns de seus simpatizantes, seria um tipo específico de direita, e segundo outros seria nem de esquerda nem de direita. A segunda característica em comum é o fato de serem atraentes para simpatizantes desavisados de algumas correntes de esquerda. A Quarta Teoria Política por causa de seu posicionamento no eixo econômico. O libertarianismo por causa de seu posicionamento no eixo social. Simpatizantes do marxismo-leninismo correm o risco de involuntariamente começar a defender a Quarta Teoria Política. Simpatizantes da Nova Esquerda (termo original em Inglês: New Left) correm o risco de involuntariamente começar a defender o libertarianismo.
A Quarta Teoria Política atraindo marxistas-leninistas
A Quarta Teoria Política, com suas variantes chamadas de Terceira Posição[^1], nacional bolchevismo e pan-eurasianismo, defende a superação da dicotomia esquerda-direita e a união de todas as forças antiliberais (entendendo liberal em todos os sentidos) e anti mundo anglo-saxão, não importando se essas forças são de esquerda ou de direita. Nestas forças se incluem o stalinismo, as muitas variantes do fascismo, o fundamentalismo islâmico, o tradicionalismo católico e os muitos nacionalismos étnicos (quando o nacionalismo étnico não está aliado ao imperialismo anglo-saxão). Se me perguntassem no elevador o que é a Quarta Teoria Política, e eu tivesse que responder em poucas palavras, eu responderia que é uma invenção de uns malucos que juntam o pior da esquerda com o pior da direita. O grande guru desta ideologia é o russo Aleksandr Dugin. No caso deste pensador, suas ideias são específicas para seu país: para ele, a Rússia deve rejeitar influências da América do Norte e da Europa Ocidental, e buscar inspiração no seu passado stalinista e czarista, e encontrar um híbrido de ambos. A influência do período soviético não seria por causa do internacionalismo proletário, mas por causa da Rússia forte. Estas ideias influenciam o governo de Vladimir Putin. Na Rússia, os nacional bolcheviques são oposição porque consideram Putin liberal demais em todos os sentidos para os padrões russos. Mas fora da Rússia, adeptos desta ideologia têm visão favorável ao presidente russo.
As raízes da Quarta Teoria Política podem ser encontradas já durante o período da Guerra Civil Russa (1918-1921), em que alguns czaristas, sob influência de Stálin, passaram do lado dos brancos para o lado dos vermelhos, ao perceberem que as tradições da Rússia seriam preservadas com mais vigor em um governo bolchevique do que em um governo liberal influenciável pelo Ocidente. Apesar da origem russa, a Quarta Teoria Política (ou suas variantes com outros nomes) é aplicável no mundo inteiro. Na América Latina, adeptos desta teoria admiram Fidel Castro, Che Guevara, Hugo Chávez e Evo Morales. Mas também admiram Plínio Salgado, Juan Perón e Ernesto Geisel. Os “quartateóricos” gostam dos governos atuais da Rússia, China, Irã, Síria, Coreia do Norte, Cuba e Venezuela. Apoiam o Hamas e o Hezbollah. Odeiam o Estado Islâmico menos por motivos humanitários e mais pelo fato desta gangue ser útil a Israel e à Arábia Saudita e se opor à Rússia. Na verdade, as raízes da Quarta Teoria Política podem ser até mais antigas que a Guerra Civil Russa e terem existido na Europa inteira. Desde quando existe capitalismo, existe vertente reacionária do anticapitalismo. Marx e Engels já apontaram isso no Manifesto de 1848.
Se perguntarmos para um auto declarado comunista se ele apoia a Quarta Teoria Política, ele provavelmente vai responder que não. Mas é comum ver muitos autodeclarados comunistas em blogs e em redes sociais repetindo involuntariamente o palavrório “quartateórico”. Falam do super-herói Vladimir Putin como se a Guerra Fria não tivesse terminado. Putin está sendo mais sensato que Obama na Guerra Civil Síria, isto é verdade. Mas nem por isso ele é aliado da causa esquerdista. Ele é aliado de líderes como Raul Castro, Nicolas Maduro e Alexis Tsipras mais por causa de geopolítica do que por causa de ideologia. Putin também é bastante amigo de partidos de extrema-direita da Áustria, da Hungria, da França. Seu governo é bastante influenciado por ideias conservadoras da Igreja Católica Ortodoxa. Nem mesmo na economia Putin é de esquerda. A Rússia é um dos poucos países do mundo que não tem imposto de renda progressivo. Há uma alíquota de 13% para qualquer renda.
Também já foi possível ver quem se considera “comunista” mostrar entusiasmo com o regime dos aiatolás no Irã. É bastante justo defender que o Brasil tenha boas relações comerciais com o Irã assim como tem com Israel, defender uma solução pacífica para o programa nuclear, criticar a hipocrisia do Ocidente, que é aliado da Arábia Saudita, que tem um regime ainda mais repressor. Uma coisa é levantar estas questões. A outra é defender um regime indefensável. E não faz sentido dizer “você está sendo etnocêntrico, não faz parte da cultura local ter um governo secular, a única forma de derrubar o regime do xá Reza Pahlevi, lacaio do imperialismo ocidental, era a teocracia”. Na verdade, havia sim no Irã aqueles que queriam substituir o regime tirânico do xá por um governo laico, mas estes foram exterminados nos primeiros dias do recém criado regime do aiatolá Khomeini. E foi somente nos anos 1970 que os aiatolás brigaram com o xá. O clero xiita apoiou o golpe de Pahlevi contra Mossadegh em 1953, junto com os Estados Unidos e o Reino Unido.
Outro erro bastante frequente é considerar o regime da Coreia do Norte como socialista. Os regimes da antiga União Soviética, de seus satélites e o ainda remanescente regime de Cuba têm muitos defeitos, mas ainda assim são socialistas (o fato de ser socialista não quer dizer que seja perfeito). Já o da Coreia do Norte tem muito mais nacionalismo, culto a líder e defesa da pureza étnica do que socialismo. Está muito mais para nacional bolchevique do que para bolchevique.
Defender regimes nacionalistas reacionários como frente contra o domínio anglo saxão no mundo não fez parte da história do comunismo. Um regime nacionalista reacionário opositor também dos Estados Unidos e do Reino Unido foi responsável pela morte de mais de dez milhões de soviéticos, se somar os militares com os civis.
Alguns comunistas de Internet demonstram grande entusiasmo também com a China, fazendo companhia para as revistas de business, que exaltam sua economia capitalista.
A própria postura de alguns “marxistas-leninistas” de atacar os movimentos negro, feminista e LGBTT podem ser influência indireta da pregação da Quarta Teoria Política. É conhecido que o marxismo leninismo ortodoxo foi historicamente conservador nas questões sociais. Mas isto porque em 1917 estas questões ainda não eram pauta da esquerda. Estas questões tornaram-se pauta de esquerda mais fortemente a partir de 1968. Além disso, o marxismo-leninismo assumiu características russas, típicas de um país tradicionalmente conservador. O marxismo-leninismo não precisa ser eternamente conservador nas questões sociais. Mesmo Cuba vem se modernizando nestas questões. Parece que a insistência no conservadorismo social está mais vinculada com o nacional bolchevismo do que com o bolchevismo propriamente dito. Alguns “bolcheviques” estão tão nacionais que fazem até campanha anti-Halloween.
Eu vi pela primeira vez a divulgação da Quarta Teoria Política na Internet na comunidade “Olavo de Carvalho nos Odeia” nos tempos de Orkut, por volta de 2005. Quem começou fazendo isso foi uma única pessoa, dotada de invejável erudição, capacidade de persuasão e estilo na escrita. Ele era assumidamente favorável à Quarta Teoria Política, dizia ser nem de esquerda nem de direita. Porém, havia uns marxistas-leninistas, menos eruditos, que viraram padawans (utilizando a linguagem Star Wars) dele. Embora continuassem a se definir como marxistas-leninistas, passaram a repetir o palavrório do “quartateórico”. Nos tempos de Orkut, havia a “Olavo de Carvalho nos Odeia”, composta em grande maioria por esquerdistas (óbvio), a comunidade oficial do Olavo de Carvalho, composta por direitistas (óbvio) e chamada pejorativamente de paraoficial pelos integrantes da “Olavo de Carvalho nos Odeia”, e também havia a “Olavo de Carvalho do B”, onde alguns membros da “Olavo de Carvalho nos Odeia” e da “Olavo de Carvalho oficial” se encontravam. A “do B” era repleta de defensores (voluntários e involuntários) da Quarta Teoria Política, tendo alguns que chegaram nela pela esquerda (na Olavo de Carvalho nos Odeia) e alguns pela direita (Olavo de Carvalho oficial).
O libertarianismo atraindo simpatizantes da Nova Esquerda
Conforme mencionado no início deste texto, a Quarta Teoria Política não é a única ideologia não esquerdista que tem potencial de fisgar seguidores de correntes de esquerda. Assim como existe o risco de marxistas-leninistas passarem a defender voluntariamente ou involuntariamente a Quarta Teoria Política, existe o risco de adeptos da Nova Esquerda passarem a defender voluntariamente ou involuntariamente o libertarianismo.
A Nova Esquerda surgiu nos países desenvolvidos na década de 1960. Seus adeptos são social democratas em questões de economia, ou seja, rejeitam a economia centralmente planificada, mas defendem um sistema tributário progressivo e um grande Estado de Bem Estar Social (a recíproca não é verdadeira, nem todo social democrata é da Nova Esquerda). Além disso, a Nova Esquerda considera tão importantes quanto questões de classe as questões de minorias étnicas, defende o ambientalismo, o feminismo, o movimento LGBTT e as liberdades individuais, e, desta forma, rejeita o proibicionismo de drogas, o serviço militar obrigatório, a vigilância do Estado aos cidadãos e a violência policial. Os libertários, cujo maior guru foi o economista Milton Friedman, defendem os mercados livres, um Estado mínimo e as liberdades individuais. Os libertários mais radicais são chamados às vezes de anarco-capitalistas.
Apesar da diferença de opiniões sobre o papel do Estado na economia, alguns adeptos da Nova Esquerda, por causa da coincidência de posicionamento sobre liberdades individuais, acham os libertários legalzinhos, potenciais aliados, menos piores do que a direita tradicional. Estas opiniões são possíveis de serem observadas em blogs, Twitter e Facebook. Mas a verdade é que os libertários não são legalzinhos (podem até ser na vida privada, mas o posicionamento político deles não é), não são potenciais aliados da Nova Esquerda e podem até ser menos piores do que a direita tradicional, assim como Chitãozinho e Xororó são menos piores do que Zezé di Camargo e Luciano. Libertários defendem um Estado tão pequeno que consideram que suas mínimas despesas devam ser financiadas com impostos sobre consumo, aqueles que pesam mais no bolso dos pobres. Defendem ou a abolição do Imposto de Renda, ou pelo menos a versão baixa e plana, aquela implementada pelo Putin (olha ele aparecendo neste texto de novo). Mesmo as opiniões sobre gays e sobre aborto dos libertários não devem ser incorporadas por quem se considera de esquerda. Libertários defendem simplesmente que o Estado não reprima gays, que não atue nem a favor nem contra eles. Mas isto basta. Independentemente do que o Estado faça ou não faça, ódio contra gays em alguns setores da sociedade existe, e por isso o Estado deve atuar por meio da educação para a tolerância e por meio do combate aos crimes de ódio. Quanto ao aborto, os libertários defendem que seja legalizado, mas não que seja gratuito. Desta forma, o problema dos abortos clandestinos precários realizados por mulheres pobres continuaria a existir. E convenhamos: uma pessoa que defende que o filho do pobre e o filho do rico, que tiveram infâncias completamente diferentes, devam competir “livremente” e defende também a legalização da maconha não é tão menos ruim do que outra que defende que o filho do pobre e o filho do rico devam competir “livremente” e não defende a legalização da maconha. E mais: é mais fácil encontrar na direita tradicional quem defenda alguma forma de rede de proteção social do que na direita libertária.
Em um post em seu blog, o economista Paul Krugman explicou muito bem porque a polarização política é basicamente unidimensional, ou seja quem defende um Estado Social é progressista em questões sociais, e quem não defende um Estado Social é conservador em questões sociais, e porque são tão poucos os libertários, aqueles que não defendem um Estado Social e progressismo em questões sociais. Para ele, tudo é uma questão de posicionamento sobre hierarquia tradicional e autoridade. Um Estado Social ajuda a diminuir a autoridade de patrões sobre seus empregados, de patriarcas sobre suas famílias. Por isso, quem é contra o Estado Social é quem defende autoridade, hierarquia, e, portanto, será conservador em questões sociais. O que o post não menciona é que apesar se serem poucos e os poucos dificilmente serem libertários de verdade, os poucos libertários se tornaram um grupo razoavelmente barulhento.
Mas como ainda não são um grupo muito grande, e a polarização maior é entre os pró-Estado Social/progressistas sociais e os anti-Estado Social/conservadores sociais, se os libertários têm que escolher entre um dos dois grandes grupos, escolher entre deixar de lado a rejeição ao Estado Social ou o progressismo social, eles não têm qualquer dúvida. Fecham com os anti-Estado Social/conservadores sociais, escondem ou jogam fora seu suposto progressismo social. Defendem a “liberdade” econômica e as liberdades individuais. Mas se são obrigados a escolher entre um ou outro, ficam com a “liberdade” econômica. Alguém viu fãs de Hayek e Von Mises criticando as execuções praticadas por agentes do Estado em favelas? Alguém viu o Instituto Millenium e o Partido Novo protestando contra o fato de agentes do Estado terem impedido a livre circulação de cidadãos pobres até as praias no Rio de Janeiro?
A discussão sobre a aproximação entre a Nova Esquerda e os libertários existe desde a década de 1960, bem antes do uso doméstico da Internet. Interessante notar que Ayn Rand, inspiradora de muitos libertários, já dizia que os adeptos da New Left eram inimigos. Podemos odiar o libertarianismo, mas temos que considerar que ela estava certa quando dizia que libertários e New Left não poderiam ser aliados políticos.
Tentando entender este fenômeno
Até aqui, foi demonstrado como está havendo, em espaços virtuais de debate político, atrações perigosas entre defensores de ideias incompatíveis, como a atração de simpatizantes do marxismo-leninismo pela Quarta Teoria Política, e a atração de simpatizantes da Nova Esquerda pelo libertarianismo. Também foi demonstrado porque estas ideias são incompatíveis. Agora cabe discutir: por que isto está acontecendo? Como não foi feita uma pesquisa acadêmica a respeito, vamos apenas às especulações.
Em primeiro lugar, pode estar havendo um problema de falta de lideranças no marxismo leninismo e na Nova Esquerda para orientar os recém interessados em atividade política. Sem pessoas de referência para explicar ideias de forma facilmente compreensível, um espaço vazio é criado. E este espaço pode estar sendo ocupado por “quartateóricos” e por libertários. Se estão sendo hábeis em divulgar suas ideias de forma fácil, parabéns para eles.
Em segundo lugar a atração dos marxistas-leninistas pela Quarta Teoria Política e dos novos esquerdistas pelos libertários podem ser fenômenos que se retroalimentam. Simpatizantes do marxismo leninismo ortodoxo podem ter ficado ressentidos com o fato de personalidades mais visíveis da esquerda no Brasil na década de 2010 como Jean Wyllys, Marcelo Freixo, Leonardo Sakamoto, Gregório Duvivier e Idelber Avelar falarem muito mais de questões sociais do que de questões econômicas (embora os citados não corram o risco de serem sugados pelo libertarianismo), aí passaram a buscar crítica ao capitalismo e ao imperialismo fora da esquerda, uma vez que não conseguiam enxergar estas críticas dentro da esquerda. Enquanto isso, ao ver quem se identifica como marxista leninista defendendo os governos da Rússia, do Irã e da Coreia do Norte e se desiludir com parte da esquerda por causa disso, alguns novos esquerdistas podem ter começado a se simpatizar com os libertários.
Se estas explicações foram pertinentes, a lição que fica é: vamos trabalhar a formação.
Por fim, um breve comentário sobre os que não são os influenciáveis, mas os defensores assumidos e os pregadores da Quarta Teoria Política ou do libertarianismo. Para alguns, uma das motivações em defender estas ideologias pode ser o desejo de se destacar no grupo, de parecer o inteligentão. É muito agradável dizer “pessoal, descobri uma nova ideologia bem bacana, que não se enquadra nessa polarização simples de esquerda e direita, sou sofisticado”.